Abusos em Portugal – Serão as crianças as culpadas apenas porque existem?

Em 2002, faz este ano precisamente vinte anos, falava-se mais dos direitos dos réus do que dos direitos das crianças violadas.Hoje, se ocorresse um novo escândalo como o do Processo Casa Pia, com as mesmas implicações políticas e sociais, acredito que os obstáculos fossem iguais. As classes sempre se defenderam. Serão as crianças as culpadas apenas porque existem?

Quando em Novembro de 2202, Carlos Silvino da Silva, um mero funcionário da casa Pia de Lisboa, foi detido na sequência de uma investigação jornalística sobre pedofilia na Casa Pia de Lisboa, Portugal ficou desnorteado. Mas resistiu. Afinal, Carlos Silvino era apenas um homem pobre despejado pela mãe na Casa Pia quando tinha quatro anos de idade. De violado tornara-se violador e, até, empresário de crianças para utilização sexual de terceiros. O mal mantinha-se nas classes baixas. Por isso a comunicação social o tratava por “Bibi”. Simplesmente.

Entretanto, foi preso Carlos Cruz, apresentador de televisão que há dezenas de anos era o namorado do País. As boas almas lusitanas – convencidas de que aquele homem tão bonito e que nunca envelhecia seria incapaz de envolver-se em semelhante crime – acamparam à porta da cadeia e do tribunal para o apoiar. Um médico, bastante conhecido em Lisboa, João Ferreira Dinis, foi também detido. Mas, a prisão que mais chocou o país – ninguém sabia quem era Hugo Marçal que, afinal, já havia sido advogado de Carlos Silvino da Silva – foi a do ex-ministro socialista, Paulo Pedroso. Portugal entupiu.

Não havia razão para tanto, pois já o Estado Novo clerical estremecera quando, nos anos 60 do século XX, uns tantos fidalgos, uns tantos políticos e uns tantos empresários haviam caído na rede (de malha larga) do processo dos “Ballets Roses”. A oposição ladrou, mas Salazar mandou abafar a coisa e a coisa sossegou antes da queda do regime ditatorial. Só décadas depois., após o 25 de Abril, outra investigação jornalística conseguiu reconstituir o processo, falar com vítimas, abusadores, polícias e magistrados e trazer à luz crua da realidade estes conluios. Os descendentes dos antifascistas que denunciaram o escândalo salazarista – quando ele prejudicava a tirania – apareceram, então, enredados em algo semelhante. É difícil aceitar a vergonha em casa própria. Falou-se de cabala. E logo que o tribunal mandou libertar Paulo Pedroso, sem porém o ilibar de responsabilidades, o antigo ministro foi recebido com lágrimas de júbilo na Assembleia da República pelos seus pares socialistas, como se regressasse, nos anos 50 do século passado, do campo de concentração do Tarrafal. Portugal não estava preparado para miséria tão grande. No entanto, ela era previsível: os brandos costumes exigem escapes. Nem só os salazaristas eram maus, e não há chancela política que liberte seja quem for da noite que se abate sobre a vida de todos nós.

A direita, sempre cética, sabe disto embora tente escondê-lo; a esquerda – filha, neta ou prima afastada de Estaline – insiste na engenharia das almas: connosco, estas desgraças são impossíveis; estamos em vias de criar, por métodos ditatoriais ou democráticos, o homem novo. Em Portugal, ninguém preveniu a desgraça. Antes da detenção de Paulo Pedroso os políticos declaravam que se devia fazer justiça, doesse a quem doesse. Após a detenção de Pedroso, a esquerda PS – acompanhada posteriormente pelas vozes envergonhadas do PCP e do BE – desenterrou o argumento da defesa dos arguidos. Foi, no entanto, António Costa (ministro da Justiça dos governos socialistas de António Guterres) que aumentou os poderes da investigação judicial, nomeadamente no que respeita a escutas. Na altura em que o fez, os visados eram grandes organizações internacionais de tráfico de droga ou de capitais.

Quando um Portugal desnorteado descobriu que existiriam organizações para exploração sexual de crianças e que havia a possibilidade de políticos as utilizarem, levantou-se uma vaga de protestos. Ter-se-ão os socialistas lembrado da Bélgica, país quase nórdico, onde foi condenada, por causa de crimes pedófilos infames, apenas meia dúzia de infames marginais.

Qual seria a reação do PSD se a calamidade lhe batesse à porta?

A Lei, que recebeu no regaço este filho, foi-o tratando como bastardo. No início do processo, avançou de peito feito. Acusou e prendeu. Mas depois, à semelhança do que aconteceu nos Estados Unidos da América com o processo de O. J. Simpson, o atleta rico que terá matado a mulher, intervieram os advogados. Simpson era negro, mas era endinheirado, razão pela qual o racismo latente nos EUA se diluiu milagrosamente; Simpson contratou os melhores advogados. Safou-se. As classes são, no mundo inteiro, como as bruxas na Galiza: não existem, “pero que las hay, las hay”. Os arguidos portugueses eram comparativamente modestos, mas poderosos, conhecidos e populares. Um enxame de causídicos surgiu também aqui e descobriu buracos na Lei. A Lei não é obrigada a ser a Justiça: como dirá qualquer discípulo de Hegel. A Lei é apenas a objetivação da Justiça. Que sejam sempre ricos e poderosos a descobrir-lhe os atalhos, parece bruxedo. Em Tribunal compareceu, à semelhança dos Ballets Rose, um grupo ínfimo de arguidos que acabaram condenados, mas que continuam a ter defensores encartados. Sobre as vítimas deste processo, o silêncio é total. É tabu. No entanto muito mudou desde então. Desde 2002 aos dias de hoje muitas coisas foram alteradas e algumas com manifesto resultado na garantia dos direitos das crianças e sobretudo das crianças maltratadas com especial relevância sobre o abuso sexual das mesmas.  Muitos casos, uns dentro da própria família, outros envolvendo gente de pequena monta, foram despachados exemplarmente nos tribunais. Os carris do mundo sempre correram entre histórias foi felizes e tristes. A História repete-se. Nunca se sabe com que fuça se apresenta.

Felícia Cabrita (jornalista que despoletou a investigação do Processo da Casa Pia e que o acompanhou até à sua decisão final. Após o 25 de Abril, no final da década de noventa, a jornalista teve também acesso ao velho processo dos “Ballets Roses”(1967) conseguindo reconstituir a história que fora arquivada ao falar com vítimas, abusadores, polícias e magistrados da época. A investigação deu origem a uma série televisiva)